A escritora espanhola Sara Mesa — Foto: Reprodução Wikipedia
GERADO EM: 30/07/2024 - 03:30
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Ao abrir “A família”,da espanhola Sara Mesa,um leitor incauto pode ansiar por um sentimentalismo que,felizmente,não encontrará na obra. Este romance não aquece o coração; assim como “Um amor” — livro anterior de Mesa lançado no país — não conta uma história amorosa. Ainda bem. A frustração e a sensação de impotência são intrínsecas à literatura da autora espanhola.
Em “A família”,a masculinidade frágil surge mais uma vez para vitimizar as peças frágeis da engenharia social: mulheres e crianças. Da figura opressiva de um pai que,acima de tudo,se entende como líder e mentor da família,é de onde emana a atmosfera sufocante no apartamento de classe média baixa da família.
Rompendo com clichês,Mesa não constrói um homem brutamontes. Ao contrário. Damián se apresenta como um advogado humanista e admirador de Mahatma Gandhi. A educação dos quatro filhos não é violenta,ao menos não fisicamente. Ele lê revistas sobre filosofia e incentiva o estudo científico dos filhos,sem espaço para literatura de ficção ou entretenimento. Em outras palavras: sem diversão para as crianças. Através de seu rígido código moral,que desaprova praticamente qualquer comportamento espontâneo,percebe-se que Damián é o principal responsável pelos códigos de conduta invisíveis.
Fonte de aflição,tantas regras subentendidas fazem com que os filhos,e mesmo sua mulher,sintam-se constantemente inadequados e insuficientes. Com individualidades reprimidas,não é à toa que Damián chama sua família de “Projeto”. E o projeto precisa ser edificante. Logo,uma televisão não é permitida na casa. Mas não só isso. Pequenas indulgências como manter um diário com cadeado,típico de garotas adolescentes,não é autorizado à filha adotiva Martina. Ela é uma sua sobrinha,órfã,adicionada ao “projeto” e constantemente corrigida. Ela pode escrever,desde que o diário não tenha cadeado,seja escrito à caneta e diante de todos.
A narração é em terceira pessoa,alternando o tempo entre passado e presente. O narrador também alterna o ponto de vista,mais próximo ora da mãe,ora dos filhos. A exceção é o primeiro e breve capítulo,“A casa”,com uma narração que se dirige a uma segunda pessoa feminina. Nele,a voz soa como um hipnotizador que quer conduzir a um estado onírico.
Os capítulos não seguem uma sequência cronológica. Mesmo que tenham uma coerência interna independente,seu valor literário está no conjunto orquestrado por Mesa,que resulta em um romance singular repleto de personagens que se iluminam uns aos outros.
Aqui e ali,os personagens cometem pequenas rebeldias capazes de arrancar alívios. Porém,estão presos a engrenagens ocultas sem saber ao certo que uma realidade alternativa é possível,como se estivessem na caverna de Platão.
Usando tons de cinza,nunca definitivos como branco ou preto,“A família” pinta uma paisagem que discute arbítrio,domínio e liberdade. Mesa coloca seus personagens em um ambiente duvidoso e inseguro,onde “palavras significam exatamente o contrário do que aparentam,ardilosas”.
Quando o filho mais velho relata as violências simbólicas que sofre com os irmãos,uma amiga lhe pergunta: “Mas por que vocês aguentam tudo isso? Já são crescidos!” Ele responde: “Você não entende nada!”
Paula Sperb é jornalista,com pós-doutorado em Letras na UFRGS
‘A família’. Autora: Sara Mesa. Tradução: Silvia Massimini Felix. Editora: Autêntica Contemporânea. Páginas: 224. Preço: R$74,90. Avaliação: Ótimo
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