Museu Nacional. Cinco anos do incêndio. Quinta da Boa Vista,Sãio Cristovão — Foto: Custodio Coimbra / Agência O Globo
GERADO EM: 10/04/2025 - 17:55
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Somos um povo nascido de ventre colonial,gênese marcada pelo impulso indomável de destruir para conquistar,apagar e explorar. Surpreende,então,que tenhamos um organismo concebido para preservar e promover herança insubstituível,de titularidade das presentes e futuras gerações. Em 1937,Getúlio Vargas criou o hoje denominado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),sob incitamento de intelectuais e artistas.
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Admirável,quase um milagre,que iniciativa assim ocorra em sociedade de fraca memória e escrava do agora,para a qual a ideia de salvaguardar o ontem — tangível e intangível — parece fora de ordem ou coisa de aposentados ociosos e dândis utópicos.
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Em seus quase cem anos de funcionamento,a obra do Iphan muito impressiona e traz esperança de que nosso legado cultural não virará pó. São mais de mil bens tombados e 50 bens imateriais registrados,vários deles com o selo de Patrimônio Mundial Cultural e Natural,nos termos da Convenção da Unesco de 1972. Além disso,mantém um cadastro formidável de quase 40 mil sítios arqueológicos.
Na tarefa de defender,estudar e divulgar tesouros inestimáveis,abundam obrigações e escasseiam meios,apesar dos sinceros e vigorosos esforços de reerguimento do órgão,empreendidos pelo atual governo,a citar,em prelúdio,a restauração do nível ministerial da cultura,o critério de profissionalismo na escolha de dirigentes e o fim do clima de terror e perseguição,arma antirrepublicana usada para algemar e amordaçar devotados agentes estatais. Não obstante,à semelhança de 1937,seguimos longe de efetivamente garantir o destino desses bens infungíveis. Os problemas são multifacetados.
Comecemos pelo ponto de maior visibilidade: em país continental,como cuidar de riqueza colossal com apenas 1.092 servidores de carreira,pouco menos de mil terceirizados e uma centena de estagiários? É certo que,desde 2023,os investimentos federais se multiplicaram,mas ainda permanecemos em patamar incompatível com a enormidade dos desafios.
Confortaria se as adversidades se limitassem a transtornos de escassez de recursos humanos e orçamentários,deficiências sanáveis num piscar de olhos. Entretanto afloram disfunções mais profundas e desafiadoras. Proliferam autoridades insensíveis,inertes ou cúmplices dos depredadores. No extremo oposto,dedicados gestores encarregados de cobrar o cumprimento de normas e padrões convertem-se em alvo contumaz de ataques raivosos dos que se consideram donos de tudo.
Ora,onde prevalecer compreensão equivocada do patrimônio cultural,a ingerência do Estado para socorrê-lo será invariavelmente enxergada como degeneração de suas funções e,pior,abominável entrave à prosperidade do Brasil. Em quadro de contrassenso ético e psicológico,transformam-se em inimigos do progresso os que se atrevem a erguer barricadas por meio de discurso,procedimentos e decisões,inclusive judiciais,com o intuito de impedir a fúria dos prepostos do crescimento econômico irresponsável,fonte de benefícios monopolizados por poucos.
Insuficiência de capital,zelo e vontade política leva a desastres. Basta lembrar dois exemplos. Um deles,o incêndio do Museu Nacional,sediado no Paço de São Cristóvão,palácio do Rio de Janeiro que foi residência da família real. As chamas incineraram o prédio,monumento de “pedra e cal”,e devoraram quase 20 milhões de itens raros. Perdemos,para sempre,o fóssil humano de Luzia (o mais antigo das Américas) e o Trono de Daomé (doação de Dom João VI). Outro,mais recente,em 2024,o desmoronamento do teto da Igreja de São Francisco,em Salvador,apelidada de “Igreja do Ouro”.
A crise do patrimônio cultural e natural brasileiro conta-se em séculos,mas nem por isso deixa de constituir crime de lesa-humanidade. Na verdade,a culpa se espraia sobre a nação. O distúrbio é de conhecimento e de consciência,pois,enquanto acharmos que o velho equivale a convite de abate,continuaremos a ignorar,descaracterizar e eliminar sem piedade aquilo que não nos pertence com exclusividade. O amanhã nos julgará.
*Herman Benjamin é presidente do Superior Tribunal de Justiça
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