Raquel Potí,pernalta há 16 carnavais no Rio — Foto: Julia Aguiar
GERADO EM: 03/03/2025 - 20:19
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A cada dia de folia,Raquel Potí chega a ficar 14 horas sobre uma perna de pau. Em 2025,serão 11 blocos,ou seja: o tempo observando o carnaval do alto pode chegar a mais de 50 horas. No último sábado de Momo,pouco depois de o sol nascer,ela desceu Santa Teresa de carro rumo ao Parque do Flamengo. Por volta das 6h30,ao iniciar sua preparação para o Amigos da Onça,se arrumou às pressas e subiu nos pedaços de pau de um metro e vinte centímetros para cruzar a Praia do Flamengo na brincadeira selvagem.
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Potí,de 41 anos,se planejou para uma maratona nas alturas: Céu na Terra,Loucura Suburbana,Carmelitas,Vem Cá Minha Flor,Cordão do Boitatá,Piranhas Perdidas e Quizomba estão na lista de apresentações marcadas em sua agenda.
— Comecei a participar ativamente do carnaval em 2009,para curar uma grande dor,depois da perda do meu companheiro,que morreu de câncer. O carnaval me salvou. Por isso eu devo tanto à rua. Não é porque é uma obrigação,mas um serviço. Eu chamo de ebó de rua,pois eu devo muito a essa festa — explica.
Raquel Potí se prepara para o Amigos da Onça em caminhão-pipa — Foto: Marcia Foletto
Pioneira no uso da perna de pau na folia,a artista de 1,55 m quase dobra sua altura nas performances nas ruas e nos calçadões. Este ano,inspirada por um beija-flor,ela deu asas à imaginação e à fantasia com ajuda da portuguesa Andrea Pereira,amiga que veio conhecer o carnaval brasileiro,e desfilou com uma armação de cinco quilos e faixas que remetem às cores do arco-íris. Na concentração do Amigos da Onça,junto a outros 12 pernaltas,Potí vestiu as pernas de pau sentada no banco de carona do caminhão de som. Cada bloco exige criatividade para bolar diferentes figurinos.
— O beija-flor é um pássaro místico,símbolo de várias religiões que trabalham com a expansão da consciência. É o único pássaro que para no ar,que voa para trás. É um pássaro muito importante para a história do carnaval. Ele apareceu na minha vida quando fui para o Céu do Mapiá,onde o Santo Daime se estabeleceu com o Padrinho Sebastião. Fiquei lá dois meses e,quando voltei,o Gabriel Gabriel,um dos fundadores do bloco,me falou sobre uma música de beija-flor e me convidou para vir na perna de pau. Tinha acabado de voltar da vila,e o símbolo do Santo Daime é o beija-flor. Foi perfeito! — explicou.
Raquel Potí recebe a ajuda da amiga Andrea no fim do cortejo Amigos da Onça — Foto: Marcia Foletto
Enquanto o público acompanhava o bloco cantando as músicas acompanhadas por 300 instrumentistas,a beija-flor Potí caminhou para o meio das onças e outras feras da mata,que se organizaram em um grande círculo de exaltação ao pássaro. Ela começou a bater as asas,cada vez mais forte. Em uma só voz,o bloco e o público cantaram o refrão: “Eu vi um beija-flor,voando em alto mar,eu vi um beija-flor,batendo asas a voar".
— Tem toda uma magia em torno dessa música que é diferente das outras. Ela fala sobre liberdade,sobre voo. Eu trabalho há dez anos na Oficina de Pernas de Pau aqui no Rio,formamos mais de 1.600 pessoas,criamos alas de diversos blocos de carnaval,e a gente sempre traz essa mística da sensação de voo quando estamos sobre as pernas de pau. Essa sensação de abrir nossas asas e expandir nossa presença. Quando estamos lá no alto nos tornamos seres encantados. É outra possibilidade de existência — explica a artista.
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Além da função lúdica do beija-flor sobre as pernas de pau,o pernalta contribui para o fluxo do bloco,direciona os foliões e dá orientações aos produtores do que vem pela frente.
— Quando estamos na perna de pau,temos uma visão sentinela,vemos além. Então o que podemos fazer para contribuir para o desenvolvimento do bloco,para apoiar a comunicação com a produção,fazemos. A perna de pau tem essa característica de ver mais além,porque está lá no alto. Está vendo o que a produção que está embaixo não vê — detalha.
Raquel Potí no bloco Terreirada Cearense,na Quinta da Boa Vista — Foto: Julia Aguiar
Na dianteira do bloco,um caminhão-pipa aliviava o forte calor sobre os foliões. Ele estava cerca de 20 metros à frente,mas a chuva da mangueira não chegava além da faixa que separava a multidão dos Amigos da Onça,que avançava pelo Calçadão da Praia do Flamengo. Por volta das 10h,Potí foi até a faixa e demonstrou que o calor também a afetou. A artista colocou a língua para fora e decidiu tomar um banho:
— Rapaz! Vamos nessa!
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Do alto da perna de pau,ela ultrapassou a faixa que separava o bloco da multidão que se acotovelava,rumo ao caminhão-pipa. Adiante,o bombeiro girava a mangueira em volta do veículo lentamente,como um relógio,sobre os foliões que ansiavam pelo refresco. A corrente d’água continuava girando e seguindo na direção da pernalta. Acima do mar de gente,Potí abriu os braços,ou asas,para receber o banho. Quando a chuva estava quase sobre ela,o fluxo foi interrompido subitamente: a água do tanque tinha acabado naquele momento. Potí voltou molhada só de suor,resignada,mas sem perder o rebolado.
— Acabou a água! — lamentou,com um sorriso no rosto.
Quando o bloco começou a acelerar para chegar ao local da dispersão a tempo,Potí novamente se deslocou para a frente,quase um abre-alas,enquanto a faixa com o nome do bloco caía ao fim da apresentação,e os artistas começavam a se misturar aos cerca de 150 mil foliões que acompanhavam o movimento. Potí atravessou o público,ainda de pernas de pau,sendo abordada e tietada pelos foliões.
— Que horas são? — ela perguntou,enquanto descia com ajuda da Andrea.
Ao meio-dia,num sol a pino,era hora de correr para o próximo bloco do dia,o Terreirada Cearense,na Quinta da Boa Vista. Na Zona Norte,mais de cem pernaltas,incluindo os mirins,invadiram o ponto-turístico por volta das 15h. Raquel Potí liderou o exército inspirado nos guerreiros do Reisado de Congo do Cariri e nos mestres da cultura popular nordestina. A artista é diretora artística do bloco,que mescla inspirações regionais de todo o Brasil com a cultura do carnaval de bloco.
— A perna de pau é esse elemento afro-diaspórico,o qual famílias ciganas,circenses e de teatro itinerante compartilharam ao longo da história da humanidade. Coloco uma roupa que lembra esse movimento nômade,mas também faço outros personagens durante o bloco — explicou.
Enquanto a banda tocava forró,xote e baião,Potí se transmutava em vários personagens,como o Boi Luzeiro,a Compadecida,o Jaraguá e a Cobra Salamandra. Junto com a diretora musical Thais Bezerra,a pernalta é responsável pela criação do enredo anual do Terreirada,e também pela escola de formação,que ao longo do ano dá acesso a centenas de alunos e alunas às práticas pedagógicas do bloco,através da oficina perna de pau e oficina de percussão.
— Algumas dessas pessoas nunca tiveram vivência artística ou a possibilidade de ter outras experiências além do cotidiano,no Terreirada eles conseguem experimentar isso — ressaltou Potí.
A apresentação se encerrou por volta das 17h,mas o dia da pernalta ainda não tinha acabado. No fim do bloco,a artista já planejava o próximo: o Bafo da Onça,às 18h. Ainda tem muito carnaval pela frente.
— O carnaval para mim é o maior ritual do mundo. Nele,podemos curar as muitas dores que suprimimos durante o ano inteiro. Ocupamos lugares da cidade que são afetados pelo abandono do poder público,pela falta de acesso a recursos,educação,limpeza,cultura. Quando o carnaval passa,é um banho de alegria e de autoestima para pessoas que vivem em determinados lugares e são negligenciadas. O carnaval é a possibilidade de viver o encanto da rua em sua experiência mais sublime — concluiu.
Raquel Potí na Quinta da Boa Vista — Foto: Julia Aguiar
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